Crítica - Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive)

As ideias são como peixes. Se você quiser pescar peixes pequenos, pode ficar em águas rasas. Mas se quiser pegar peixes grandes, precisa ir mais fundo. Nas profundezas, os peixes são mais poderosos e puros. Eles são enormes e abstratos. E são muito bonitos." Existem cineastas que estão abrigados e aprisionados a um padrão idealista de uma metodologia extremamente limitada, em outras palavras, são condenados a um processo igualitário sem criatividades autorais, algo que será o diferencial em seu trabalho como diretor de cinema. David Lynch é um cineasta que é totalmente desapegado do padrão que são iguais aos demais e de mesmisses estéticas. Lynch faz parte do "time" de cineastas que têm o seu cinema como um objeto mítico e ambíguo. Não são todas as obras cinematográficas que trarão uma "resposta" ou uma coesão lógica e plausível, mas, o que será o elemento predominante nesta ambiguidade ficcional, será a própria ambiguidade ficcional. Para David Lynch, ideais são como peixes, ou seja, devemos pescar ideias no mais profundo do abismo.

Há incongruências reflexivas que, são inexplicáveis e complexas de serem engolidas. Pode parecer paradoxal, mas, às vezes, à falta de respostas, é a resposta. Um bom exemplo que realça esse paradoxo é o amedrontador e dúbio cinema de David Lynch. Uma mescla de vários sentimentos como medo, comédia, suspense e crime. Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive), é um mergulho enigmático enxurrado de incertezas sobre percepções íntimas de uma realidade quotidiana. Em uma experiência meditativa que perfure e penetre tal atmosfera irreal, é como se tivéssemos tomado banho em um riacho noturno, assombroso e sombrio numa noite em que a névoa toma conta do céu escuro. Caso esta névoa tome conta de nossos olhos, nos
afogamos e morremos diante da escuridão noturna. Na relação espectador/filme, há necessidade de uma cautela, destreza ótica e sensorial que deve permear todo o contexto atmosférico do surrealismo semiótico de David Lynch.

Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive), é um divisor de águas e um divisor de caminhos para uma realidade desconhecida daquilo que é esbelto e estereotipado. E, uma busca visível e imparável de disseminar sentimentos de temor e mal-estar. O filme se torna uma mescla entre o airoso e o repugnante, dois opostos que partilham de um mesmo conteúdo e estão presos numa pequena caixa fechada à chave. Ao mesmo tempo que o filme me trouxe diversas sensações e reflexões, me trouxe inúmeras dúvidas sobre o magnetismo venusto da grandíssima Hollywood. Hollywood é o cume de um artista? Hollywood é apenas um sonho/pesadelo? Hollywood espalha à desgraça alheia? Pessoalmente, consigo enxergar certas nuances de uma crítica ao mundo obscuro e glamourizado de Hollywood. Na verdade, há um lado romantizado e um lado que deseja tirar a máscara do romântico. Para mim, isso é algo o que traz o enigma temático para fora do universo que está o filme, nos tornamos a peça principal de um jogo chamado "manipulação", ou seja, somos dominados e manejado por indivíduos que estão fantasiados, mas, tem um, porém, não sabemos quem é o vilão da história ou quem é o bonzinho e inocente de todo esse arco crescente persuasivo.

É muito engraçado e inteligente como nossa linguagem corporal irá flertar e responder a certas ações que são mostradas numa tela gigante de cinema, isso mostra a obediência, passividade e submissão perante o gigantismo audiovisual. Pessoalmente, eu vejo o cinema como uma grandíssima e gloriosa dança ritualística, um diálogo imperceptível de imagem, que será transportado para nossas ações corpóreas, ou seja, quando estamos totalmente entregues e imersos em uma obra cinematográfica, permitimos fazer parte daquele universo, então, nosso corpo responde com os atos que são exibidos na telona. Isso se chama Cinema e Corpo, onde, em filmes de terror, viramos o rosto para não ver aquilo que nos traz pânico, o erotismo e cenas quentes trazem excitação, o cômico traz riso e o suspense leva o espectador a ficar em um estado de inquietude. Bingo! É o grande sentimento sensorial que está presente em, Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive), um modo de brincar com os próprios sentimentos humanos de modo corporal.

Nossos olhos são a janela para nossa alma. No cinema, isso não é diferente. A câmera é a porta de entrada para que aquela imagem seja transmitida e refletida em nossos olhos. Há um pequeno detalhe que me chamou muita atenção neste filme, uma distorção ótica que se apresenta como um defeito ótico chamado astigmatismo. O astigmatismo é um defeito na curvatura da córnea, uma estrutura transparente que cobre os olhos do indivíduo. As cores e as luzes não são totalmente visíveis, causando uma distorção de algo que pretende ser iluminado, mas é opaco e sem vida. Em suma, Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive), apresenta uma imagem que parece ser extremamente vivo, mas é mórbido. Então, vivemos em um mundo de imagens ilusórias?

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