Crítica - Irreversível (Irréversible)


"O seu cinema não é para os fracos de coração, mas, se você quer mergulhar em assuntos sensoriais, distorcidos e delicados, prepare-se".


Minha memória sempre foi muito errônea. Não me lembro exatamente quando ouvi e quem foi a pessoa que me disse essa frase, mas foram palavras que jamais saíram da minha cabeça, palavras que me levaram a repensar sobre minhas qualidades e meus defeitos, a refletir sobre quem eu realmente sou. Considerando tudo, a soma de todas essas questões são incógnitas: somos fortes ou somos marionetes dos nossos próprios medos e defeitos?

Na verdade, acho que tudo isso são questões que precisam de uma evolução, um amadurecimento de um indivíduo que só o tempo será capaz de responder por nós. Tudo isso, de certa forma, se fará presente na formação do nosso gosto pessoal, inclusive, algo que também se faz presente quando assistimos a um filme e detestamos, e cinco anos depois voltamos a assisti-lo e nossa opinião é totalmente diferente da primeira experiência.

Qual é o motivo da frase que dá início ao texto? Senti uma necessidade de dizer que se não gostamos de algo, aquilo pode se alterar com o tempo, mas nem tudo parece sofrer essas transformações temporais.

Quando somos imersos por toda aquela diegese que está presente em "Irreversível" (Irréversible), seguimos em um fluxo alucinógeno em busca de um criminoso que praticou um estupro. Marcus, interpretado por Vincent Cassel, entra em becos, vielas e boates numa busca intensa e incansável pelo terrível criminoso que praticou esses terríveis atos com a sua namorada.

Praticamente, já estamos acostumados com a subversão provocadora e intrigante que é uma das peculiaridades presentes no cinema de Gaspar Noé. Ele é um cineasta que tem uma filmografia marcada por traços violentos, mortes extremamente impactantes e, principalmente, o sexo, um sexo que não é meramente belo ou espiritual, e sim, carnal, sem nenhum vestígio poético, apenas para ser pornográfico e imoral.

Por último, podemos dizer que o cineasta é muito ousado e destemido em seus próprios temas. Mas sinto um certo incômodo em tudo isso, ao mesmo tempo que ele quer ser diferentão, o diretor de cinema acaba se perdendo em suas próprias ideias. É como se ele lançasse uma corda entre duas árvores e, na hora de atravessar, faltasse equilíbrio e caísse em meio aos seus próprios defeitos.

Não devemos chutar o balde em tudo só porque um filme experimental aborda o sensorialismo de um indivíduo. Ao mesmo tempo, uma obra experimental pode ser totalmente recheada de recursos poéticos, sociais e morais. Se ela atropelar tudo, pode ser vazia e até insignificante.

Penso que não existem filmes mais importantes do que outros. Existem filmes que se sobressaem diante de algo mal idealizado e realizado, mas a importância de uma obra será formada pelo seu contexto e pelo impacto que aborda aquele tal assunto. O fator determinante de algo importante é o tempo, e isso dependerá de suas qualidades individuais como algo autônomo. Todo filme precisa de um polimento muito sutil e delicado; um escorrego pode ser algo eternamente irreversível.

"Irreversível" (Irréversible), de 2002, é o sexto trabalho dirigido por Gaspar Noé e, mesmo que seja um filme visivelmente psicodélico, tudo o que não faz parte desse psicodelismo imagético é negligenciado. É um longa-metragem que está muito mais preocupado com as sensações agonizantes e as desconstruções espaciais e óticas; o contexto, ou melhor, a trama é deixada apenas como um segundo plano. Um é o complemento do outro, mas uma pequena parte é esquecida, acabando com o potencial da outra parte.

Em compensação, é muito interessante como a narrativa fragmentada, até certo ponto, se encaixa perfeitamente com as barbáries que presenciamos no filme. Algo que podemos esperar e que, com absoluta certeza, encontraríamos em um filme dirigido por Gaspar Noé. O rompimento cronológico faz parte de toda aquela experiência, criando uma própria ordem, é como se o cineasta fosse o próprio Deus daquela ficção: o tempo é dele, a vontade é dele, é ele que determina tudo e todos os trilhos que o filme irá percorrer. Se analisarmos de forma geral, isso criará uma ambiguidade e uma expansão hermenêutica para aquela obra. De certo modo, seu cinema se assemelha muito aos conceitos linguísticos propostos pelo cinema de fluxo, que tem como princípio estilhaçar uma ordem cronológica e deixar que nós, espectadores, sintamos os fluxos daquelas imagens. Não é um cinema que entendemos 100% do que está sendo transmitido, mas sentimos.

Se percebemos bem, todos esses fragmentos e nuances abstratas são frutos dadaístas que jamais sairão do cinema. Planos muito ambíguos, montagens que se parecem com colagens de expressões artísticas características do Dadaísmo, um espírito vanguardista que nunca abandonou a criatividade dos cineastas. Aqui, tudo isso é articulado como prioridade, deixando todo o resto como algo de segunda mão.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crítica | Touro Indomável (Raging Bull)

Crítica | Pai e Filha (Late Spring)

Crítica - Uma Natureza Violenta (In a Violent Nature)