Crítica - Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Does't Live Here Anymore)

"Por causa dos filmes que faço, as pessoas ficam nervosas, porque acham que sou uma pessoa difícil e raivosa. Sou difícil e zangado, mas eles não esperam meu senso de humor. E a única coisa que me ajuda a progredir é o senso de humor."

Raramente vejo de modo tão presente esse senso de humor que preenche um protagonismo em seus filmes. O Rei da Comédia (1982) é um de seus filmes que tem como premissa esse respiro muito mais cômico do que suas demais obras, que exalam muito mais o submundo do crime e as violências que acontecem no dia a dia. Sei que essa frase citada por ele são palavras que apontam para um lado muito mais pessoal e íntimo de sua vida — não é a minha intenção ser um intruso da vida alheia, mas ironicamente, ela soa sarcástica e passa por uma linha extremamente fina de se tornar inexistente quando assistimos e analisamos o núcleo da filmografia do baixinho que é um dos maiores gigantes na arte de dirigir filmes.


Dou graças ao talento que foi dado à Martin Scorsese, um dom que já salvou inúmeras noites entediantes, pois, geralmente, não lembramos a data, o dia e nem a hora que assistimos a um filme de um tal cineasta. Agora, no caso de Scorsese, eu me lembro a data, a hora e até a posição que eu estava acomodado em minha cadeira num filme seu. Para mim, assistir seus filmes sempre foi uma das experiências mais transcendentais e prazerosas de toda a minha bagagem com a cinefilia. Muitas pessoas opinam para qual lado o seu gosto cai mais na filmografia dele, e quando me perguntam isso eu não sei responder de maneira concreta à respeito de minha opinião sobre qual é o que mais gosto. Até hoje não sei qual é o filme que eu mais gosto, eu fico oscilando entre Touro Indomável (1980) e Taxi Driver (1976), por mais engraçado que isso possa parecer, é uma bipolaridade minha que se intensifica cada vez mais quando eu revejo esses filmes.

Taxi Driver (1976) foi um trabalho que eternizou um laço autoral amarrado pelo cineasta, que são os seus filmes incel. São filmes que, na maioria das vezes, são protagonizados por homens que desejam uma mulher, mas colocam obstáculos em sua frente, por muitas vezes barreiras que são colocadas por ele mesmo. Eles acabam se fechando numa bolha de mágoa, depressão e violência. Touro Indomável (1980), Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) são obras que expressam essa característica que, para muitas pessoas, já chegou numa saturação criativa dos filmes de Scorsese. Eu, pelo menos, sempre gostei de como ele usava esse atributo para desenvolver um estudo psicológico de como a falta de rotina pode ser maléfica para uma mente que já é propensa a desvios. Acho que essa marca meio que está se perdendo em suas obras mais recentes; o cineasta agora opta por abordar a mise-en-scène de modo mais carregado e bonito, e, claro, colocando o estudo dos personagens na soma dessa equação.


Agora, se pegarmos uma máquina do tempo e retornarmos aos anos 1970 (1974, para ser exato), Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Doesn't Live Here Anymore) é um filme totalmente oposto desse extremismo masculino. Para ser sincero, ele traz esse lado mais opressor da figura masculina na família, mas tudo de forma muito mais antagônica do que o protagonismo mais evidenciado em seus trabalhos anteriores. Scorsese não troca o rótulo de sua identidade; ele apenas inverte os papéis, retirando esse módulo clássico e dando lugar a um novo ponto de vista: uma mãe solo que corre para todos os cantos em busca de uma vida melhor, principalmente, uma vida mais confortável para ela própria e para seu filho.

O drama dirigido por Martin Scorsese segue a jornada de Alice Hyatt, protagonizado por Ellen Burstyn, uma mulher que vive num relacionamento abusivo com seu esposo, mas todo esse sofrimento é barrado pela morte repentina de seu marido. Agora, Alice procura soluções para reconstruir a sua vida e a vida de seu filho tagarela e desbocado chamado Tommy (Alfred Lutter), começando uma vida de idas e vindas.


Sem dúvidas, é um filme que, com certeza, entra na lista de um dos trabalhos mais autorais que Scorsese dirigiu. Ele deixa estampado a sua visão a respeito da figura do homem numa família, exemplificando isso utilizando a figura de uma mãe viúva que não consegue se reestruturar com suas próprias mãos. A decupagem das cenas traz uma organização dos fatos, uma facilidade de captar esses pontos que não considero como implícitos, e sim, escondidos numa superfície bem rasinha. A decupagem desse longa é didática e autoexplicativa; se repararmos bem, ela é usada de modo muito claro a respeito desse purismo ideológico que corria nas veias do cineasta. Observamos que, após a morte de seu marido, a protagonista não para quieta num canto para estabilizar a sua vida e a vida de seu filho. Mesmo que ela procure soluções em cidades e lugares, certas partes de seu defeito estão nela mesma.


Em suma, podemos dizer que Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Doesn't Live Here Anymore) se tornou uma prova audiovisual de que sempre houve uma obsessão de querer exibir uma provável deturpação mental por meio da narrativa que evoluía cada vez mais em prol do clímax. É como se desde cedo ele quisesse trazer um naturalismo e um realismo para as astúcias de seus personagens por meio de etapas que provocam situações alarmantes. Tudo isso causa uma soma e se intensifica justamente pelas adversidades de uma vida corriqueira e monótona. Eu toquei nesse assunto de soma e equação, pois desde sempre percebi que o diretor se tornou um professor de matemática e que, por meio desses elementos, fizesse uma soma encaixando tudo isso numa unidade fílmica. E, com o passar do tempo, todo esse fluxo criacional foi virando uma de suas marcas mais fortes no ramo cinematográfico.

Vale ressaltar que esse filme está na boca de muitas pautas que defendem ideologias que são completamente construídas em prol do gênero feminino. Já ouvi muitas pessoas dizerem que é um filme que diminui as qualidades de uma mulher na falta de um homem. Eu mesmo, em minha opinião, não procuro ir para esse lado pragmático e ideológico. Devemos respeitar a data e como a sociedade enxergava esses assuntos naquela época; um filme de 1974 não deve ser um tradutor atemporal de questões sociais e civis. Não enxergo por esse ponto de vista; devemos abordar essas ideias e debatê-las conforme a sua datação histórica, ou seja, não devemos refutar aquilo que está no passado. Já ouvi dizer que é um dos filmes mais machistas de Martin Scorsese, eu não vejo e nem julgo o passado para todo sempre.


Tenho noção de todos os lados que a moeda cai nesse filme. Eu estaria mentindo se dissesse que é um filme desmantelado e desconstruído. De fato, ele é bem estruturado e alinhado (cronologicamente falando). Até então, ele me ganha pelo seu aspecto mais arrumadinho, só que ele se perde muito em como o seu discurso se manterá em pé. Na prática, ele procura manter uma sustentabilidade por meio da comédia em alguns momentos, mas tudo isso soará muito mais como uma covardia do que algo que faz parte propriamente como um elemento da formação do todo. Todo o conservadorismo que Scorsese discursa do início ao fim não funciona tão bem com outros elementos de gênero que ele propõe mais pra frente. É quase uma camuflagem para disfarçar todo o seu extremismo, mas nada disso se sustenta de modo tão congruente. A abordagem jocosa que se faz presente no filme soa tanto quanto covarde da parte do próprio Scorsese.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crítica - Bailarina - Do Universo de John Wick (Ballerina)

Crítica - Armadilha (Trap)

Crítica - Apartamento 7A (Apartment 7A)