Crítica - O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo)
É indiscutível que sempre houve uma disputa pela medalha de ouro que será dada por aquele diretor de cinema que irá conseguir retratar de modo que case e se encaixe de modo realista com o realismo histórico do nascimento, do ministério e, sobretudo, do sacrifício do cordeiro de Deus e da sua paixão pela humanidade nos momentos de angústia e martírio no Getsêmani. Mas nem sempre isso é feito de modo arbitrário e consolidado num formalismo imaginário; são elementos que vão variar bastante em como aquele cineasta vai optar pela escolha de linguagem e, também, como ele vai acabar desenvolvendo todo um jogo imagético de uma construção histórica e, ao mesmo tempo, gloriosa que faça uma massa homogênea dentro do quadro.
Filmes que escolhem abordar a figura de Cristo, na maioria das vezes, seguem um idealismo pragmático que, a meu ver, vem muito de como o próprio catolicismo enxerga a fisionomia física de Cristo e, querendo ou não, esse ponto de vista acabou pendendo e caindo no colo da sétima arte. Em decorrência disso, são obras que retiram toda uma espontaneidade e humanidade de como deve realmente ser interpretado o texto bíblico e de como provavelmente era a vida das pessoas que viviam naquela época. Isso vem muito de um tradicionalismo religioso, um processo que é iniciado lá atrás, na infância do indivíduo, onde devemos acreditar que aqueles quadros renascentistas são a verdadeira face de Cristo e, como tudo na vida segue uma cronologia, o cinema acabou adotando esse misticismo, escolhendo a figura de Cristo Jesus como um homem engessado.
Um bom exemplo desse ponto de vista um pouco mais hermético e espiritualista a respeito da figura do Filho de Deus é o Cristo no filme de Franco Zeffirelli, em Jesus de Nazaré (1977). Zeffirelli escolhe por uma abordagem mais engomadinha de Jesus Cristo, uma imagem que remete de modo instantâneo aos quadros clássicos de Cristo Jesus: um homem alto e magro, de cabelos castanhos e olhos azuis; resumidamente, é a fisionomia física que se popularizou como uma realidade concreta de sua provável verdadeira face em sua vida terrena.
Entre inúmeros cineastas que arriscaram a sua intelectualidade audiovisual para trazer algo da parte de Deus para dentro de sua filmografia, chegamos ao nome de Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Pasolini foi, sem dúvidas, um dos maiores expoentes e um dos cineastas mais polêmicos quando o assunto era a sua vida pessoal fora das câmeras e os seus próprios filmes. Seus filmes partiam de simples pontos de partida; na prática, ele pegava esse formalismo conceitual e subvertia pela sua própria maneira de enxergar contextos políticos, sociais e principalmente religiosos.
Por mais que ele partilhasse desses métodos um pouco mais comuns, seus filmes sempre mantinham uma assinatura no rodapé. Toda essa visão mais intimista era explicitada tanto na maneira de decupar as cenas, nos diálogos e na maneira como os personagens seriam retratados naquela história. Isso não vai ser diferente em O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo), de 1964. Logo de cara, o filme testemunha esse modelo de enxergar a sociedade, como ele pensava a respeito dessas incógnitas religiosas (que é propriamente descrita).
O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo), no fim das contas, se tornou um exemplo bastante vivido de como o próprio Pasolini via as coisas ao seu redor. Ele não deixa de ser um longa-metragem que abre mão desse modelo iconoclasta (uma de suas grandes características dentro de sua filmografia adotado desde cedo). O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo), é o único filme devidamente religioso que ele dirigiu. É um longa que colhe de fatos históricos que são contados no livro do Evangelho de Mateus, que diz respeito sobre a vida, o ministério e a paixão de Cristo.
O nome Pier Paolo Pasolini sempre foi tido como um dos mais polêmicos dentre um catálogo de cineastas que também tiveram uma vida totalmente desmantelada no mundo lá fora. Essa rebeldia que foi adquirida no mundão foi repassada em seu trabalho como diretor de filmes. Uma das coisas que sempre me chamou atenção em seus filmes era como ele pegava um simples tema e o transformava, mas que acabavam resultando em autorais (em quesito de modo em que a sua vida era levada). E, mesmo que esse longa não utilize de toda uma concretude histórica, ele consegue manter muito bem uma devoção com os acontecimentos descritos na Bíblia. Me parece que ele não passou esse ceticismo para seu filme (pra ser sincero, isso é ótimo quando o assunto é como aquele filme sobre Jesus será retratado; uma obra que toca nessas questões não pode ser pisada com sapatos que são calçados no mundão).
Embora o cineasta seja muito lembrado por esse modo mais manipulador e desobediente com os seus temas, aqui, me parece que ele se manteve um pouco receoso comparado a seus trabalhos anteriores e, ainda que o longa escolha por um lado mais realista e direto da vida de Cristo, ele não deixou de lado aquela veia misticista (que diga-se de passagem é muito comum em filmes bíblicos). Um bom exemplo que deixará claro esse raciocínio, de como ele vai construir essa imagem-afecção, é como esse ato de filmar o rosto causará uma sinergia de personagem para espectador (tudo isso graças aos dispositivos cinematográficos). Rei dos Reis (1927), de Cecil B. DeMille (1881-1959), em seu trabalho, o cineasta traz uma espiritualidade por meio de efeitos práticos simples. Contrastando a sombra e a luz, ele cria uma imagem aurática e sobrenatural da figura de Cristo e de certos personagens.
Toda essa escultura estilística esculpida por DeMille nos anos 1920 foi exportada para obras futuras e, inclusive, para o próprio Jesus idealizado por Pasolini. Basta perceber como o primeiro plano do filme é efetivado — Maria, a mãe de Jesus, está gestante; o primeiro plano, o close-up, já cria uma santificação da própria Maria. Em seguida, um contra-plano é feito, agora, localizando José, o pai de Cristo. Esse contra-plano localiza ele para dentro daqueles espaços, quer dizer, num primeiro momento, somente Maria era exposta naquele mundo narrativo (causando uma presença única e de destaque naquele ambiente). Eu fico nessa tecla, pois logo no início existe uma condução que, pessoalmente, acho que foi de extrema importância para agilizar o processo cronológico dos eventos narrados na Bíblia.
Se formos comparar aos demais filmes contemporâneos que têm como premissa narrar a jornada de Cristo, são filmes que, com o passar do tempo, deixaram de lado uma simplicidade estética para no futuro adotar um maneirismo que estilize aquelas imagens. Ou seja, são trabalhos que não se garantem pela palavra propriamente dita, mas sim, pelo modo em que essas imagens criarão um senso transcendental (no passado, a palavra era a prioridade; agora, nos dias de hoje, a palavra é deixada à mercê para uma artificialidade fazer parte desse sensorialismo). Se levarmos isso em conta, percebemos que esse longa é um filme que não prefere realçar ou criar um ornamentalismo.
Isso não o transforma em um filme pobre, pois seus aspectos mais vertentes estão na palavra, na maneira como Enrique Irazoqui vai expressar e espalhar aquela palavra. Por mais que pensemos que o longa dirigido por Pasolini seja simples, ele recompensa toda essa escassez cênica para acabar escolhendo meios clássicos e, com isso, estabelecer um sentimento mais íntimo pela própria figura de Jesus Cristo, pela sua mensagem de redenção e pela sua paixão demonstrada na cruz do Calvário.
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