Crítica - Um Tiro na Noite (Blow Out)

Penso que é necessário que o cinema morra com a chegada limite de seu próprio estilo temporal. Eu acho que não precisa cismar, fazer apologias ao ódio para essa "extinção" de certos movimentos e estilos cinematográficos, mas sim, para que a arte continue expandindo e ganhando novos rumos com o nascer de novas mentalidades no ramo de direção. Virou um passeio quando está chegando perto da virada de uma década que, após uma certa saturação estética de algumas obras e com o nascimento de novos nomes na arte de direção, essas recentes limitações engenhosas dão lugar agora para uma nova onda de pegar essas referências e repaginá-las.

É claro que, mesmo que essas mudanças sejam tidas como uma renovação, elas não abrem mão de também ser uma revitalização do clássico. Se levarmos isso em conta, é muito gostoso e agradável pela nostalgia que as imagens irão criar com essa nova onda que cresce. Boa parte dessa paixão envolvida por essa época vem muito mais desse tesão nostálgico daquilo que se apresenta visualmente como clássico.

Alguns cineastas dessa época marcaram o território de sua carreira de modo que seguem uma linha independente, mas também, sem deixar de lado sua predileção por seus ídolos. Foi uma década bem marcada por essas cores, pelo melodrama e, principalmente, por esse maneirismo que pega um pouco desse saudosismo e readapta para uma visão em voga. Um belo exemplo experimental que usou e abusou desses exageros é o David Lynch, com "Blue Velvet" (1986), que é altamente relembrado pelo uso distópico de um realismo formal. Ele, o Lynch, tem esse formalismo como núcleo, e a sua cobertura estilística é o seu tempero absurdista.

Do outro lado, temos o Peter Greenaway, um dos pilares e mais claros representantes desse estilo. Por exemplo, em "The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover" (1989), também é um exemplar de onde esses estímulos imagéticos são tão importantes quanto a narrativa. Entretanto, um dos maiores nomes dessa evidência e reverência, que deixou claro suas paixões pelo thriller no caminhar narrativo, é o Brian De Palma. Logo em "Vestida Para Matar" (1980), já é decretado esse estilo de exageros de utilizar uma formalidade e costurar esse simplismo com uma narrativa simbólica de idas e vindas.

Não fica difícil perceber que sua abordagem não se apega a elementos clássicos do gênero. O suspense hitchcockiano é visualmente presente ali naquele modelo do De Palma, só que é coberto por uma argila que remolda esse formalismo mais fluido do Hitchcock para adotar uma estilização bem mais melodramática. Essa personalização traz um senso enigmático e, dramaticamente falando, patológico. Enquanto Hitchcock se apegava na construção espacial que o suspense trilhava com seus personagens, De Palma usa fraquezas já existentes decorrentes do passado daqueles personagens, para logo após, aumentar esses traumas com pitadas de sensualidade, medo e violência.

São 364 dias de diferença de "Vestida Para Matar" (1980) para "Um Tiro na Noite" (Blow Out), lançado em 1981. O anterior reflete as paixões estéticas do De Palma. Agora, esse é muito mais centrado na personalidade, no íntimo. Em suma, não que "Vestida Para Matar" (1980) não crie relações frontais com ele, mas, em quesitos técnicos, "Um Tiro na Noite" (1981) é intimista e tem muito mais a lata à De Palma. O thriller conspiratório é focado em Jack Terry (John Travolta), um técnico de som de filmes de terror de baixo orçamento. Jack é um perfeccionista e está na procura do grito perfeito para uma cena de assassinato que irá acontecer no chuveiro (acho que não é preciso citar qual filme partilha dessa referência).

Na busca desse grito, ele acaba testemunhando um acidente que ceifou a vida de George Mc Ryan (John Hoffmeister), um candidato à presidência. Ele consegue salvar a vida de uma jovem chamada Sally (Nancy Allen). Jack acaba se apaixonando por Sally, que tem objetivos cobertos por tramoias a respeito do acidente que levou a vida do governador.

Uma boa parte desse espelhamento que, quando batemos o olho, remete ao Brian De Palma, se dá muito logo pela cena introdutória que já deixa pré-instalado esse molde do terror melodramático. Num plano subjetivo, observamos um serial killer que rodeia a casa de jovens rebeldes. Ali, eles estão se divertindo com músicas altas, sexo explícito e uma moça que está estudando para uma prova enquanto lida com a barulheira vinda do outro lado (tudo isso no ponto de vista do psicopata).

É interessante como esse dispositivo vai aludir e provar uma tara, é como se o cineasta quisesse que todos os filmes de suspense fossem iguais ao seu. O De Palma é bem egoísta nesse aspecto de replicar em outros olhos a sua visão de como um suspense deve ser. Ao mesmo tempo, isso se torna ambíguo, pois conhecemos esse lado saudosista dele. Então, são elementos que ficam intercalando de uma simples relação entre fã e ídolo para algo que realça, por meio de seus aparelhos, um egoísmo de sua parte.

É um filme que, de certa forma, se torna um agente que correlaciona uma tara que se replica até em trabalhos futuros. Mesmo que seja um filme mais jovem do que "Um Tiro na Noite" (1981), "Os Intocáveis" (1987) mantém uma referência presente nas cenas de violência. Ambos funcionam como uma ferramenta para identificar onde será o próximo lugar que o sangue irá derramar. Percebemos um fetiche exibicionista na parte dele, onde o palco que a violência desfila é em ambientes forrados por pessoas. Por ironia do destino, as cenas de ambos são numa estação de trem.

Cito "Os Intocáveis" (1987), pois com ele relacionamos uma das fontes climáticas do gênero. Essas formas de identificar um perigo que está prestes a acontecer não serão uma multidão que vai conseguir maquiar os hematomas daquelas vítimas.

Vi algumas notícias recentemente que citam Brian De Palma como um cara que articula os seus projetos com muita meticulosidade, com muita atenção aos pequenos detalhes. Com um perfeccionismo muito grande no resultado, nos efeitos sonoros e também nos detalhes técnicos de suas obras. Se levarmos isso para a diegese de "Um Tiro na Noite" (1981), o personagem do John Travolta é o registro impresso na película da imagem íntima do cineasta. Quer dizer, ele consegue criar um vínculo empático com o personagem do John Travolta sem deixar de se autorretratar na imagem. Jack se assemelha com o De Palma. Jack expressa sua insatisfação com o grito da moça no chuveiro (já deixando estabelecido como ele, De Palma, é por trás das câmeras e na pós-produção).

"Um Tiro na Noite" (1981) deixa boas perguntas a serem respondidas: como essa busca pela perfeição deve acontecer? O que é o realismo? Esse realismo precisa sangrar?

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