Crítica - Vidente por Acidente

Penso que todo o peso crítico que é colocado sobre as costas dos trabalhos audiovisuais, que têm como objetivo atingir um bloqueio emocional, quebrando essas essências que estão impregnadas num determinado local, construída logo numa primeira impressão com as imagens, são situações que foram e ainda estão sendo levantadas com muito mais agilidade e intensidade com o acordar da cultura do cancelamento nos dias de hoje. Um problema que muitas pessoas pensam ser algo da nossa contemporaneidade, — sendo que não é tão bem assim que as coisas funcionam. Por mais que muitos imaginem que isso seja alvo de nossa geração, — vale lembrar que, — desde sempre, o homem vasculhou problemas e pretextos para derrubar aquilo que trará uma inventividade renovadora, que irá prosperar para um avanço linguístico na arte de direção de filmes, na arte da interpretação e também no processo crítico.

Mesmo que tal cultura seja muito mais presente em nossos dias atuais, não é preciso voltar tanto tempo atrás para reparar que já havia vestígios de um provável e futuro apagamento criativo. Basta voltar um pouco no tempo, — lá no comecinho dos anos 2000. O roteirista, produtor e cineasta americano M. Night Shyamalan foi um dos nomes primordiais para alavancar essa onda de cancelamento, por causa de desmanchar uma unidade pragmática da maneira "correta" de se fazer, interpretar e criticar filmes. Shyamalan foi e ainda é o terror de vários críticos de cinema no mundo afora (algo totalmente inválido se pensarmos na variação semiótica que o cinema com as suas determinadas características pode propor). Infelizmente, — é uma visão bem limitadora e que, de certa forma, pode acabar numa degeneração, causando um desgaste e ficando saturado também para aquele que gosta de assistir a filmes como um hobbie.

Tenho em mente que são problemas que podem causar mais uma morte para o cinema, mas não é uma morte que promete próximas renovações no futuro da indústria e, sim, uma morte que vai ser capaz de causar um desmatamento mental do indivíduo/cinéfilo e das próprias qualidades fílmicas. Só que todos esses dilemas não estão presos num só lugar, quer dizer que, — aqueles que odeiam o trabalho de um determinado autor espalham sua visão a respeito disso para outras pessoas no mundo afora. Se os haters do Shyamalan latem de um lado, o outro lado também ouvirá o latido. É uma desfeita com o novo que não se dá apenas no local de origem do cineasta. Eu mesmo vejo o Brasil como um dos mais influentes e maiores expoentes desse analfabetismo temporal de querer denegrir um estilo apenas por subverter. Claro que tudo isso será um caso, pois existem muitos que procuram trazer uma nova perspectiva para seus filmes e que usam coberturas demasiadas de abstrações que, na totalidade, são vazias para todo o recheio plástico desenvolvido.

Uma das frases mais generalizadas e mal entendidas é que o cinema nacional é desde sempre focado numa mediocridade da parte dos produtores, aquela velha frase: se um filme é fabricado no Brasil, ele é automaticamente uma porcaria. É claro que, como cada estilo cinematográfico, — existem sim, — trabalhos que prometem até o fundo das calças, mas que acabam resultando numa porquice. Isso é presente até em clássicos do cinema, em filmes que muitas pessoas dizem ser uma obra-prima atemporal do cinema. Mas se analisarmos todo o contexto histórico, filosófico e crítico da obra, não é isso tudo o que dizem por aí. Filmes que determinam os seus elementos em uma determinada área dialética, em suma, eles querem ser algo a mais, mas acabam se perdendo nesse querer — é a síndrome de Yorgos Lanthimos, que está se espelhando por causa de uma má idealização que vai acabar pendendo no todo.

Foi esse um dos maiores deslizes nesse novo longa-metragem dirigido pelo Rodrigo Van Der Put. Ulisses (Otaviano Costa) é filho de uma empresária que tem como desejo maior montar uma família de arquitetos. Ele (Ulisses) não consegue ver nenhum propósito vocacional em sua vida profissional, então, Ulisses acaba parando nas mãos de uma coach picareta, interpretada por Katiuscia Canoro. Ela acaba fazendo um chá que promete poderes que vão além do imaginário. É aí que ele acaba desenvolvendo dons, habilidades de vidência. Só que essa habilidade veio disfarçada de diversos problemas para o próprio Ulisses e também problemas dos quais a sua família será vítima. Vidente por Acidente (2024) Ã© o quarto filme de um dos cineastas mais polêmicos do Brasil. Por abordar questões e passagens religiosas de formas satíricas, o Van Der Put trabalha em áreas hereges de carteira assinada.


Não tem como tirar os trabalhos anteriores da reta, — pois de uma forma ou de outra, — eles acabam se tornando membros de elementos que compram os mesmos arquétipos. A Primeira Tentação de Cristo (2019) Ã© o primeiro filme do brasileiro. É uma obra que já se mostra ousada e cética utilizando sua metodologia cinematográfica. Toda essa implicância religiosa não parou por aí, lançado em 2018, O Último Hangover Ã© outra comédia satírica que brinca com esses temas religiosos (beirando o desrespeito). É preciso citar esses dois filmes, pois eles se entrelaçam numa mesma direção que pretende trazer uma performance ousada e pesada sobre essas questões, mas que se parecem muito mais com aquelas esquetes vergonhosas do Porta dos Fundos. Essa é a minha implicância maior com o cinema dele, pois ele quer usar essa seriedade temática como premissa, cobrindo com uma paródia barata que parece que foi escrita por um ateu esquerdista.

Embora o discurso que ele apresente seja algo que beira o motivacional, ele se opõe nesse centro de início que é trazer um discurso que faça uma alavanca de modo dinâmico de procurar rapidamente uma vocação. Quer dizer, ele passa a mão na cabeça dessa preguiça e vulnerabilidade jovial num discurso que, em última análise, é necessário e poderoso para o mundo que vivemos, mas que toda a sua 'densidade' de mandar uma moçada preguiçosa procurar um emprego/propósito é diluída pelo maneirismo que está muito em voga nessa geração Z.

Até consigo ver uma inventividade na cena em que o personagem do Otaviano Costa bebe o chá mágico. Inclusive, é uma cena que traz características clássicas do experimental, mas que se colocarmos tudo isso na totalidade, — o todo não vai aceitar o vazio desses elementos. É aquele velho desleixo que acaba crucificando a totalidade. Ao mesmo tempo que ele deseja manter erguido o seu discurso, toda força é completamente derrubada por causa de um uso bobo do maneirismo e, também, de um fetiche contestador que quer de todas as formas maneiras elevar a ousadia, mas, se olharmos de relance a filmografia de Van Der Put, percebemos que não se passa de apenas uma rixa religiosa. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crítica | Touro Indomável (Raging Bull)

Crítica | Pai e Filha (Late Spring)

Crítica - Cidade dos Sonhos (Mullholland Drive)