Crítica - Ainda Estou Aqui (2024)
Baseado na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva (publicada em 4 de agosto de 2015), Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles, acompanha a história de Eunice Paiva, que aqui é interpretada por Fernanda Torres e por sua mãe, Fernanda Montenegro. Trata-se de uma mulher que vive no Rio de Janeiro do início dos anos 1970, com seu marido, interpretado por Selton Mello, Rubens Paiva — ex-deputado federal cassado — e seus cinco filhos, numa “vida plena” à beira da praia. Até que Rubens Paiva é preso, torturado e morto.
Se tirarmos todo o contexto político explícito do filme, tudo será coberto por algo muito mais simplório e que, em um primeiro momento, pode parecer bobo, ingênuo, que é uma capa heroica bordada por essa linha familiar em que o próprio Rubens Paiva é o protagonista de sua casa. E isso, de certa forma, ultrapassa essa barreira de seriedade política quando tocada por esse arco sagrado e intocável, de modo resumido, transcende essa força e resistência política. E é de forma quieta, quase minimalista, que Salles constrói esse espelhamento, criando camadas sensoriais que aludem, com respeito, a esse amargo histórico.
Partindo da mesma vertente, cenas que partilham da estética found footage evocam e multiplicam esse melancolismo criado pela imagem. Ainda assim, essa nostalgia gerada pelo dispositivo diegético é apenas uma base para maquiar o sangue derramado. Existem antíteses que são geradas para contrastar de forma bem perspicaz, e outra que acho interessante ser citada é aquela partida por esse recurso documental de não escancarar por muito tempo uma violência sentida por um acontecimento histórico. Isto é, ao invés de a televisão ligada na sala ser uma voz que ecoa de modo gritante, ela se torna membra de algo mais íntimo, sem se espalhar com os outros recursos da montagem, apenas para transmitir, e não panfletar, um puxão de orelha ao regime.
Eu acho, e ao mesmo tempo fico em dúvida, a respeito dessa possível propaganda política do longa-metragem de Salles. Eu sinto que, ao mesmo tempo em que ele coloca a sua mão ali em algumas cenas, é admirável essa sutileza em não propagar de modo disseminador. Quer dizer, ao mesmo tempo em que esses opostos são evidentes dentro de um plano, o cineasta transmite uma ambiguidade em torno do regime. Walter Salles consegue encaixar muito bem uma ética documental dentro de um parâmetro mais engomadinho, sem estereotipar as cenas com uma leitura crítica.
Toda essa violência corporal que, infelizmente, algumas pessoas sofreram durante a ditadura militar, claro, será bruscamente diminuída, ultrapassando os limites dessa esfera diegética e acabando por interagir com o corpo do contemplador, causada pela imagem, com sentimentos que oscilam entre o prazer, a curiosidade e a repulsa. Um dos meus maiores receios antes de assistir ao filme foi esse provável deslize autoral que, com essa leva de obras autobiográficas, ficou muito presente: o deslize em reviver o histórico. Pois, nesse contexto, não há uma linha tênue que separe a ficção do real, porque, se não houve câmera naquele momento, não houve registros. Quem é o cineasta para parafrasear a dor de alguém?
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